sábado, 17 de janeiro de 2009

Garota abraçada ao Caderno Espiral

“Lá em cima daquela serra,
Passa boi, passa boiada,
Passa gente ruim e boa,
Passa a minha namorada.”

Guimarães Rosa, Sagarana.

Aliás, tinha centenas de pessoas reunidas num mesmo e pequeno espaço. Era asfaltado, com cobertura cor-de-vinho-velho. E várias pegadas esbranquiçadas, dos mais variados tipos de calçados, das mais variadas cores e dos mais variados tamanhos. E todas rumavam em direção às pequenas salas onde seus donos se silenciavam sob o alarde ensurdecedor.
Estava quente. Provavelmente o dia mais quente do ano. Por mais que algumas árvores cercassem o lugar e a sombra do prédio se expandisse pelas centenas de cabeças reunidas em torno do portão que estava prestes a abrir, a mancha de água rodava todas as pessoas nas camisetas, marcando exatamente em baixo dos braços. Ainda faltava meia-hora para a abertura, mas o comum da biologia humana é o sofrimento por antecipação. É claro, as machas de suor não são de calor. São de pré-ocupações.
Assim como Luciano, essas seriam testadas a fio e sem qualquer piedade. E boa parte desse grupo era jovem, com cerca dos seus dezoito anos. Pré-acontecimentos. Pré-ocupações. Pós-adolescência. E por isso vieram.
Luciano estava até que bem tranqüilo. Taqueava um jogo no celular relaxando enquanto o portão de vidro quebrado não se abria. A princípio, parecia ser o único que tinha condições de sobreviveras quatro horas que se seguiriam.

Ria-se da menina abraçada ao seu caderno espiral, rindo escandalosamente sob aquele sol escaldante e arrebatador. Luciano concentrou-se e riu da piada que tinha ouvido da outra garota, localizada a 10 metros de distância. Seus ouvidos estavam cobertos por música alta, mas não era inevitável que pudesse ouvir mais do que os sons que percorriam os fones. Isso porque Luciano tinha treinado o final da semana inteira para bloquear os sons adversos a sua própria mente.
Seria, até mesmo, injusto da sua parte exercer seu dom num local onde seria testado com as mesmas aptidões dos outros candidatos. Alem disso, era amedrontador ter de ouvir quarenta pensamentos numa sala onde teria que se concentrar arduamente. Telepatia, misturada a apatia. O chiclete, a borracha e a lapiseira azul.
As cinqüenta questões, as quarenta pessoas, as quatro janelas e as duas canetas esferográficas preta. Nada de maior interesse. A não ser que prefira levar em consideração o ventilador rodeando sobre as cabeças ferventes dos vários submetidos a provação.
Luciano não era exceção. Fervia com sua cabeça tentando se concentrar nas suas questões e não nos gritos que subitamente surgia-lhe a mente, fingindo uma possível convicção de controle. Lembrava unicamente do livro sobre a cabeceira. Lá, estava um livro de contos, entre eles, o de um garoto que tinha o mesmo dom que ele.

Mas qual a diferença? Depende da referência.

Por exemplo, Luciano é real. Danny não. Danny adora sorvete de chocolate, Luciano não.
Meras diferenças e brutas semelhanças abasteciam a mente do garoto que precisava de um momento, apenas um momento, para se concentrar na sua provação. E, com absoluta certeza, ele não precisava se lembrar do outro garoto.
Desviando os olhos do ventilador, Luciano retomou sua concentração e sua lapiseira e fitou as doze folhas de papel a sua frente. E sorriu.

Doze horas depois estava jogado na cama, com os pés descalços e as mãos sob a nuca. Refletia instrospectivamente sobre a loucura do pai e a ausência mental da mãe.
Tinha acertado quarenta de cinqüenta questões no vestibular, onde a telepatia se fundia a antipatia. Ou à apatia.


O Iluminado

domingo, 11 de janeiro de 2009

Platonismo ou não? Eis a questão.

Tentar fugir é inevitável. Eu tentei mais de uma vez e digo: será em vão da próxima também.
Eu, Roberto, posso garantir posso garantir que os regressos e as fugas, por mais opostos que sejam um do outro, são movimentos esquivos que jamais devem ser ignorados ou praticados.
Deixe-me explicar minha teoria… Antes, a mim.

Nunca fiz questão de me preocupar em como seria minha vida depois de determinado período. Pretendia sofrer meu presente explorando meus males de forma obtusa e antiquada. Sinceramente, nunca consegui. Nunca explorei porcaria nenhuma de forma nenhuma. No fim das contas eu ignorava tudo e ponto final.
Eu tinha um determinado tipo de fobia social. Não conseguia me ver no meio das multidões, não importando a qual tipo de multidão seja. Aliás, multidões servem exatamente para este propósito: muvucar. Mas não é disso que estamos falando. O que na verdade importa é que eu era cinza num mundo colorido. Isso quando não era colorido num mundo cinza. Esse meu lado casto é um tanto engraçado pois, mesmo depois de duas décadas e meia de vida, nunca mudou.
Relacionamentos? O meu mais longo fora com Viviane. Seis meses na primeira tentativa e três meses na segunda. Mas já explico como aconteceu. Alias, nunca tive um relacionamento durável com qualquer uma.
Minha família é simplesmente imensa! Estava sempre a fugir e tentar conquistar o meu particular, ou seja, estava sempre cercado por primos, tios ou algo que o valha. Mesmo não querendo. Mas não tenho mais motivos pra me preocupar com isso.

Viviane.
Surgiu sutilmente na minha vida. Acredite, foi assustador. Sabe aqueles amigos de amigos do vizinho da cunhada da prima de tal fulano? Essa era Viviane. Não importa sua descrição, não que não mereça, claro, mas aí vou me prolongar e ter de explicar mais milhares de coisas vãs. É isso que você quer agora?
Amigos por alguns dias. Subjetivos por algumas semanas. Namorados por alguns meses. Foi bem assim: ela me seduziu. Parecia que o modo como ela falava comigo era adaptado, pois eu ouvia as conversas dela com outras pessoas e me espantava. Comigo era solta, com um sotaque “Cult” e assuntos não finitos. Pode acreditar, ninguém nunca tinha se dedicado dessa forma por mim. Por isso, cedi. E a amei algum tempo depois.
Mesmo com meus ataques de “Bento Santiago”, acreditava que minha Capitu era tão casta quanto eu. Sem duvidas, até hoje não sei se estou enganado. Enfim, após nossos longos meses de namoro, algo foi crescendo que me incomodava incomensuravelmente. Não que seja verdade, mas eu me sentia sufocado. Viviane me dava toda privacidade, mas o problema era comigo. Então provoquei o término da relação. Com um ataque de ciúmes doentio que era inexistente. E então sumi.
Quatro meses foram suficientes para minha saudade me atormentar e me fazer voltar. Por incrível que pareça, fui aceito de braços abertos. Não queria que tivesse acontecido assim. Foi então que cedi pela ultima vez e pronunciei aquelas três vorazes palavras-chave. Hoje, eu preferia não as ter dito, mas, já que aconteceu, então foda-se.
Nos outros três meses, a melancolia voltou ao meu ser e, por assim dizer, não queria Viviane fisicamente comigo. Eu preferia o platonismo. É maluco, mas é o que eu sentia. E, por isso, novamente sumi.

Hoje, quando estava naquela festa familiar, o evento era o mais novo bebe da família. Filho do meu primo com não lembro quem. E o nome daquele bebe me atormentava os ouvidos irritantemente. Inclusive o mesmo apelido, que eu tinha dado a outra pessoa.
Viviane.
A última vez que ouvi tal apelido estava no alto da escada da casa. Acredito que foi a ultima coisa que ouvi.

Por isso, não adianta reviver nem fugir. Simplesmente tente ignorar.

Mas não foi o que eu fiz.