quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

O Porta-Guarda-Chuva e a Cimitarra



Eu sempre odiei aquele porta-guarda-chuva.
Mas minha amada tinha ganhado de sua tia. Ou avó, não me lembro. E ela também detestava minha cimitarra persa, que comprei com minha economia de um ano de mesadas aos quinze anos. Lembro que quase me mataram quando cheguei em casa com ela. Expliquei que tinha lido num livro que meu herói favorito usava uma cimitarra para se defender de seus oponentes numa guerra contra seres mitológicos, e que eu estava namorando na loja fazia um tempão. Também expliquei que ela teria efeitos apenas decorativos.

Anos depois tinha de fazer duras negociações com minha noiva: ela deixava aquele porta-guarda-chuva medonho ao lado da porta da sala e eu podia pendurar minha cimitarra na parede acima. Quase que formando um Yin-Yang. Já disse que conheci minha noiva na loja onde comprei minha cimitarra nove anos atrás?

Mas aquele porta-guarda-chuva sempre teve algo de estranho. Ele me instigava uma raiva absurda, não sabia bem explicar. Acho que foi a ocasião em como chegou em casa. Foi como se uma neblina densa de mau-humor tivesse penetrado por todo canto logo em que ela chegou carregando o tal artefato. Pensando melhor, acabo de me lembrar que esse treco foi da tia-avó dela. Porque a energia bizarra que aquilo transmitia era exatamente igual a que sentia perto da maligna da tia-avó dela, que me olhava de canto de olho e cochichava tenebrosidades a meu respeito aos conhecidos.

Em contrapartida, minha cimitarra me transmitia uma calma profunda. Era como se eu soubesse que ela estaria sempre lá, para me defender de qualquer guerra, em qualquer momento que eu precisasse. E eu tinha guardado tanto dinheiro nove anos atrás para comprá-la. Sempre que percebia, pegava-a na mão e ficava admirando o punho cravejado com pequeninas pedras esverdeadas onde está escrito 'Verdade' em alguma língua que não faço a menor idéia. Talvez Persa, ou Árabe, já me esqueci de novo. "حقیقت" Era bonito e pronto.
Mas toda vez que tirava da parede, Ela gritava comigo. 'Por que você tirou esse negócio medonho da parede de novo?'. Ou então 'Sabe que a parede mancha toda vez que mexe nesse seu bagulho inútil?'.

Até que um dia, enquanto eu estava com minha cimitarra nas mãos de novo, ela ralhou comigo. Eu me assustei e, sem querer, tropecei no porta-guarda-chuva e a cimitarra voou da minha mão e a acertou em cheio. O punho pesado bateu em sua cabeça. E uma concussão a levou de mim.

Eu sempre odiei aquele porta-guarda-chuva.

A partir daquele dia, ainda mais.

"A verdade é um espelho que caiu das mãos de Deus e se quebrou. Cada um que recolhe um pedaço diz que toda a verdade está naquele caco."
Provérbio Persa

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Muralhas de um coração I


Ao contrário do que dizem por aí e do que penso, eu tenho um coração de carne como todo mundo. Não é de pedra, de gelo, peludo ou seja lá qual seja a atual definição que dão dessa vez. É um coração como qualquer outro.
A maior prova disso é que, se você me cortar, eu vou sangrar como qualquer outro. Provo: sou um ser humano e tenho minhas limitações como qualquer outro.

Mas nem por isso sou igual. Novamente posso provar.

Sempre senti esse músculo involuntário um tanto quanto patético. Fica se retorcendo por coisas idiotas e por pessoas sem merecimento. Parecia que cada vez que ele se retorcia, um hematoma novo nesse pedaço de carne surgia, como se alguém arremessasse uma pedra ou atirasse uma flecha ou algo que o valha.
Óbvio. Todo mundo é assim. Sofre uma decepção e se machuca, blé.

Para evitar esse tipo de injúrias, resolvi fazer uma coisa que li uma vez num livro. Quer dizer, algo bem semelhante. Num conto, um rapaz arrancou seu coração e o guardou num cofre para evitar qualquer tipo de sofrimento. Obviamente não funcionou muito bem, uma vez que o coração ganhou vida própria por estar fora do corpo do rapaz. Mas e se o cofre estivesse no meu peito? E se não fosse um cofre, e sim paredes impenetráveis? Melhor: muralhas. Estaria imune a esses espólios. Pedras seriam desviadas e flechas seriam quebradas quando arremessadas no cofre ou muralha, seja lá que raios eu colocasse. Ainda estaria em mim meu coração, mas selado a vácuo para impedir detritos externos.

Pensei. Não posso levantar essas muralhas a qualquer um. Devo baixar a guarda a algumas pessoas, claro. E essas devem ser bem escolhidas. Meus métodos, assumo, nunca foram bem esclarecidos, pois apesar de ser bem racional, eu levo meus pensamentos por um lado bem passional. Como uma porta traseira da imparcialidade. Uma divisão quase que perfeita do racional e passional. Deve ser algum efeito colateral de trancafiar meu músculo num cubículo de pedra. Ele deve se manifestar de alguma outra forma, enfim.

O fato é: eu ergui muralhas em torno do meu coração para não permitir que qualquer um possa machucá-lo. Isso me tornou mais frio?  Talvez. Isso impede de demonstrar meus reais sentimentos? Talvez. Mas talvez fosse a maneira mais sadia de não me machucar com tanta facilidade.

Mesmo machucando quem tenta penetrar por entre essa muralha.