terça-feira, 13 de julho de 2010

Felicidade Satisfatória

Meu pai sempre foi daquele tipo de homem que saia de casa logo pela manhã com o jornal embaixo do braço e o terno bem arrumado, sem nenhuma dobrinha e com o cabelo arrumado todo certinho, impecável. Levava eu e minha irmã para o colégio e rumava ao serviço. Ligava ao meio dia em casa pra saber se estava tudo bem e mandava um beijo pra minha mãe. Chegava em casa as sete em ponto da noite, com o terno em cima do ombro, o óculos meio tombado e o cabelo antes todo arrumadinho, meio bagunçado. Dava um beijo na minha mãe, ia tomar banho, colocava sua pantufa e ficava no sofá até a hora de dormir.

Minha mãe sempre foi daquele tipo de esposa dedicada. Acordava meia hora antes de o papai sair pra trabalhar e fazia-lhe o café que cheirava a quarteirões de distância. Buscava o jornal na porta e colocava em cima da mesa, aberto na página favorita do meu pai, as notícias econômicas. Preparava o café da manhã com devoção e uma alegria sem tamanho. Quando chegávamos do colégio, o almoço já estava quentinho na mesa já arrumada. Às vezes, enquanto mamãe estendia a roupa no varal, parava para conversar com nossa vizinha ou para espantar Toby, nosso cachorro, da roupa lavada. Papai chegava e mamãe servia-lhe seu prato preferido, que era o refogado de abobrinha, que eu e minha irmã fazíamos cara feia ao comer. Mas papai dizia que ia nos deixar forte, então comíamos sem reclamar. Mamãe via TV com papai enquanto fazíamos nossos deveres.

Minha maninha sempre foi aquela nerd e insuportável. Ela tinha dezessete anos e era conhecida como a ‘sabidinha’ da sala. Acordava cinco minutos antes que o papai, fazia sua série de alongamentos, tomava banho e colocava o uniforme do colégio. Ficava me aporrinhando para levantar logo. Abria a janela do meu quarto me obrigando a levantar. Arrumava o material que ia precisar para aquele dia e ia para a cozinha, ajudar mamãe a preparar o café. Quando eu chegava, ela estava comendo aquele cereal horrível. Sentava no banco da frente do carro do papai, onde ficava brincando de trocar a estação da rádio ou ficava se vangloriando da sua ultima nota dez no colégio, onde ficava o recreio todo na biblioteca estudando. Ela me esperava na porta do colégio, onde voltavamos a pé para casa, conversando sobre as peculiaridades do dia. Chegava em casa, ela arrumava o quarto e voltava a estudar. E ali ficava até o jantar.

Sempre me chamaram de folgado. Sempre fui o último a levantar, mas nunca viam que eu sempre era o último a ir dormir. Sempre acordava com minha mana abrindo a janela e pulando na minha cama. Eu espreguiçava e ia pro banho. Trocava-me e ia tomar o café com maninha, mamãe e papai. Papai falava sobre algum índice novo da bolsa de valores, mamãe contava sobre os lençóis novos do vizinho e maninha tagarelava sobre o que o professor disse do último trabalho dela. Despedia-me de mamãe e ia com papai pra garagem, onde ele sempre comentava da minha altura. Sentava-me no banco de trás do carro, ligava meu foninho de ouvido pra não ouvir minha mana falar asneira e dormia no carro, até o colégio. Lá sempre me divertia pacas. Meus colegas eram uns palhaços que só sabiam conversar coisas inúteis. Sempre saía mais tarde da sala, conversando com eles, e encontrava minha maninha na porta do colégio, me apressando pra ir embora logo. Chegávamos em casa, almoçávamos a comida fresquinha da mamãe. Eu ia pro meu quarto, ouvir música, ver TV, jogar algum jogo ou ficar a toa. Papai chegava, íamos pra sala de jantar, fazíamos nossa refeição e ajudava mamãe a tirar a mesa, todos bem animados. Fazia um pouco dos deveres, ficava um pouco na sala e ia dormir.
Todo sábado fazíamos alguma coisa em família. Ou íamos à casa da vovó, ou íamos ao parque levar o Toby pra passear, ou íamos a algum restaurante ou alguma coisa do gênero. Domingo acordávamos todos cedo, íamos a Igreja e voltávamos, conversando alegremente sobre as coisas da semana que tinham acontecido.

Felicidade Satisfatória.

Mas eu sei que meu pai nunca quis ser economista. Sei que o sonho dele foi ser professor de música junto com seu colega da primeira faculdade dele, Artes. Sei que ele detesta refogado de abobrinha e que tudo que ele mais gosta de comer é o cachorro quente que vende em frente ao escritório dele. Sei que ele casou jovem demais com a mamãe, mas ela já estava grávida da maninha. Sei que, pra dizer a verdade, ele ainda se encontra com o amigo de faculdade, e que eles sempre saem juntos, sem a mamãe perceber. Também sei que papai só dirige para nos levar ao colégio. Ele detesta assumir a direção do volante.

Eu sei que mamãe tinha outros sonhos quando jovem, antes de ter minha maninha. Ela queria ser jornalista e, para pagar a faculdade, trabalhava como monitora de berçário. Percebo a tristeza nos seus olhos toda vez que chega alguma carta de amigas de faculdade dela. Sei que ela detesta cachorros e, conseqüentemente, nunca aceitou Toby totalmente. Sei que ela detesta o trabalho de dona de casa, faz o faz parecer divertido para não se aborrecer. Aliás, também sei que ela toma vários comprimidos para depressão, tentando se esquecer do acidente que matou o pai dela.

Minha maninha tem taras enormes pelo Rogério, o garoto popular do colégio. Tanto que as garotas de lá vivem tirando o sarro dela por causa de uma declaração que ela fez sem saber que estava sendo gravada. Sei que quando ela diz que vai dormir na casa da amiga dela sexta à noite, na verdade as duas estão indo para alguma balada, pois ouço quando ela chega às seis da manhã nas pontas do pé. Também sei que ela esconde alguns comprimidos embaixo da cama, mas nunca me perguntei o que era.

Sei que nenhum de nós é católico, apesar de irmos à igreja toda semana. Sei que todos nós nos irritamos em levar Toby para passear e ter de recolher as fezes que ele deixa nas calçadas. Sei que ninguém mais tem paciência quando a vovó começa a contar as mesmas histórias, de quando era jovem e namorava o vovô. Sei que nenhum de nós suporta acordar cedo, a não ser talvez minha irmã.

Sei que quando colocava meu fone de ouvido no carro e dormia, na verdade, estava ouvindo minha irmã conversar com papai. E que quando ficava até tarde vendo filme ou ficava no PC, era porque papai e mamãe discutiam até tarde e eu não conseguia dormir.
Sei que é impossível se ter uma família perfeita. Sei que, socialmente, o significado da felicidade pode ser bem relativo. Sei que não somos todos felizes com nossas vidas.
Sei que eu me isolava o máximo que podia da minha família, mas era pra manter pra sempre o que eu tenho por uma família feliz. E assim somos.

2 comentários:

felipe ! disse...

Não tinha paciência pra ler tudo que vc escrevia - tá, me chama de pen pal preguiçoso - mas esse texto tá maravilhoso.

Acho que é a simplicidade. Um pouco de surpresa por que não era saudosismo e sim uma... uma... uma analise. E todos nós somos assim. Pintamos o que vemos pra esconder o musgo preto embaixo...

Flávia Dessoldi disse...

Engraçado como a historia de cada um está aí... Seja lá qual personagem desses descritos vc for... Pode ser o pai, a irmã, a vó caduca ou mesmo o cachorro que caga na calçada. Eis a epigrafe de todos os tipo atipicos que consistem numa familia.
Adorei o texto, Peter-Boy.
Sinto sua falta. Todos os dias.