domingo, 23 de maio de 2010

Ctônico

Hoje estava com as meias molhadas. Mas não havia o que ser feito a não ser caminhar para casa, como todo final de tarde. Milhares de pensamentos a lá Hipnos e Tânatos, de tão desditosos e enfadonhos. Fazia o que tinha de fazer quase que automaticamente, sem se preocupar em pensar. Uma vez que pensar era tedioso demais, pois quando se pensa em algo, está apenas valorando socialmente o que esse algo é, se preocupava em imaginar como poderiam ser todo o resto. Pensara em fugir para a mesma raiz de árvore, mas devido a Zeus e seu mau humor não-rotineiro do mês de maio, resolvera que o melhor lugar a se encontrar naquele momento era uma confortável cama com cobertas quentes.

Novos horizontes tem se aberto àquele rapaz. Eram bilhares de alternativas, de escolhas, de direções, de qualquer coisa que lhe poderia ser destinados. Era, sem dúvidas, o momento de maior glória, que ele jamais encontraria novamente. Era aquele o momento onde todo o futuro deveria ser planejado. Calmamente e sem antecipação, sem realmente precisar se adiantar, afinal, já estava bem adiantado.
Mas, definitivamente, não era isso que ele via.

Ao invés de ver tudo aquilo como alternativas a serem escolhidas, era visto como Hidras a serem domadas. Ao invés de escolhas, ele acreditava ser a grande escolha de Ulisses, entre Scylla e Caríbdes. Ao invés de direções, era possível distinguir o olhar dele como se visse os Campos Elíseos, o Tártaro e a Planície dos Narcisos. Não era possível ver o que pensava, pois nada era claro para ele, assim como se auto-destinara.
Se via como Prometeu ou Andrômeda. Acorrentado.

Por mais que soubesse que deveria ter de escolher o que seguir, o que acreditar, resolvera simplesmente se colocar nas raízes das árvores e contar o número de formigas que subia em suas mãos. E, por isso, ninguém o julgava muito capaz de fazer qualquer coisa, mesmo acreditando que tinha um Gênio brilhante. Talvez realmente o tivesse, mas não funcionava bem como queriam. Era inóspito a qualquer um que tentasse entender seu interior, mesmo porque saberia que ninguém o poderia fazer. Já desistira de criar esperanças a encontrar qualquer coisa que lhe entenda. Mas era tão simples de se compreender. O problema dos homens é simples: não querem nada simples. E era isso que faltava em alguém para que pudesse compreender tal complexidade: simplicidade.

Tudo que se deveria fazer foi deixado de lado. Necessidades físicas foram abandonadas. Sentidos biológicos foram abalados. Enquanto o calor se estende quando se sente confortável, o frio torna tudo mais descortês e um bocado sem cor. Afinal, cores são tão complexas quanto qualquer outra coisa. Talvez esse fosse o grande motivo das mãos dele serem tão geladas. Que combinavam perfeitamente com seus olhos, que emanavam certa energia dúbia. Aliás, mesmo Jano poderia ter dúvida do que era dito.

Definitivamente, os pensamentos que se tinham exprimido não eram dignos de Atenienses, mas eles soavam tão sonhadores e sem sentido que era como se algum Morfeu ou Ícelo dominasse o ar. Nada se mostrava muito lógico no que era dito, mesmo quando fazia algum sentido. Com isso, qualquer coisa era taxada como vil. Isso o fez parar de dizer tudo o que pensa.

Enquanto pensava no quanto estragara toda a construção e alguma forma não convencional de reparar o grande erro, já dentro do coletivo, passou uma senhora carregando uma pesada sacola, onde era possível ver comida enlatada de gatos. Ela o encarou diretamente nos olhos. Pela frigidez do rapaz, rapidamente desviou o olhar para a janela, onde só era possível ver pesadas cortinas de água descendo torrencialmente. Já tinha até se esquecido da senhora quando novamente virou-se e encontrou a senhora a encarar-lhe fervorosamente. Por instinto, logo imaginou que o cabelo estava bagunçado ou que a gola da camisa estava torta e tratou de se mirar no espelho do vidro para ver se procedia tal pensamento. Nada de anormal. Ele se virou uma terceira vez para a senhora e ela continuava a lhe encarar. E lhe sorriu.

"_ C'est l'Homme aux mille tours, Muse, qu'il faut me  dire, Celui qui tant erra quand, de Troade, il eut pillé la ville santé, Celui qui visita les cités de tant d'hommes et connut leur esprit. Celui qui, sur les mers, passa par tant d'angoisses, en luttant pour survivre et ramener ses gens. Hélas! même à ce prix, tout son désir ne put sauver son équipage: ils ne durent la mort qu'à leur propre sottise, ces fous qui du Soleil, avaient mangé les boeufs; c'est lui, le Fils d'En Haut, qui raya de leur vie la journée du retour.
Viens, ô fille de Zeus, nous dire, à nous aussi, quelqu'un de ces exploits..." (Homero)

O rapaz ergueu uma sobrancelha e começou a olhar através da senhora. Via outra senhora sentada ao seu lado, também o fitando, com um pequeno sorriso desbotado no rosto. A senhora segredou algo com a sua companheira, que passou do sorriso desbotado a um olhar brilhante. E voltou a encarar o rapaz.

Consciente de que estava encharcado, e que não havia outra escolha senão aguardar o final da viagem, o rapaz virou-se pra janela e ali permaneceu por um bom tempo. Não olhava as janelas propriamente ditas, mas sim algo que ninguém mais conseguiria enxergar. O fato de Apolo e Selene dominar o céu ao mesmo tempo enquanto chovia era algo que possivelmente era único. E o mais incrível, Iris deixara dois rastros entre sua passagem entre o Céu e a Terra.

Chegado o fim da viagem, levantara-se para descer e contemplar de perto os rastros de Iris, encontrara novamente as duas senhoras, descendo do coletivo. Ouvira algo como ‘Fim da Viagem, Dona Lá’ ou algo que o valha da senhora com a sacola de ração enlatada enquanto ela saltava do automóvel. Ambas as senhoras se encontraram com uma terceira senhora e ficaram a papear ali na calçada, onde várias pessoas se empurravam com pressa de passar. Enquanto o rapaz descia, as três o olharam com um sorriso e sussurraram algo como ‘Hora’.

Caminhando em direção ao sonhado cobertor, deduzira ele que tinha encontrado as Moiras e que elas já haviam decidido seu destino. Não havia o que se preocupar então, mesmo com relação a escolhas, alternativas, direções e destinos. Bastava existir para não mais existir. E tudo substancialmente sem aviso prévio. Então não há motivos sólidos para preocupações com qualquer coisa, bastava rumar.

Je reconnais, mon hôte, en toutes tes paroles, les pensées d'un ami , d'un pere por son fils: je n'en oublierai rien.

Um comentário:

Danny disse...

Olá Adorei o blog!!
Estarei a seguir e acompanhar suas postagens!
Espero que acompanhe minhas postagens também!

Beijos.