Amara escrevia uma lista de compras. Fazia um bom tempo que
ela não o fazia. Estava sentada toda curva sobre um pedaço de papel, remoendo o
tubo da caneta preta, enquanto pensava nos itens de sua lista. Já tinha
revirado os armários vinte e sete vezes, quase o número de vezes de invernos vividos.
Suas listas, quando mais nova, eram recheadas de itens como biscoitos, doces,
balas e filmes. Hoje, se tinha um chocolate era muito.
Deu um longo suspiro. Coçou a cabeça, levantando a cabeça em
direção ao armário e viu a porta semiaberta, presa por algum pedaço de roupa
mal dobrado ou algo que o valha. Ficou encarando a porta por longos segundos
decidindo se deveria verificar a origem do problema ou se ignoraria até a
próxima ida ao guarda roupas. Optou por voltar a sua lista. Ela se lembrou que,
quando criança, tinha medo do armário, pois acreditava que os monstros lá
moravam. Inclusive, uma vez foi tentar caça-los com uma espada de brinquedo, e
ali ficou por longo minutos presa, até que alguém a encontrou e resgatou.
Parecia que sua pequena jornada tinha acabado mais cedo e de forma mais
frustrante que imaginava.
Aparentemente, o monstro do armário não tinha ido embora,
mas ela não mais o encarava, então ficaram quites.
Prendeu os cabelos no alto em um coque apenas para solta-los
de novo. Tomou uma xícara de algo que estava na pia que tinha cor de café, mas
gosto de sapólio. Foi até o mercado com sua lista, percorrendo de prateleira a prateleira,
procurando os itens. Era um processo automático, não a fazia pensar. Amara
estava com outros 162 problemas na cabeça, quase que sua altura em centímetros.
No caixa, ela teve um vislumbre de um senhor barrigudo, carregando uma sacola
de compras nas costas com um olhar mareado, como se não estivesse de fato ali.
Lembrou de quando lhe contavam a história do Homem do Saco, que raptava
crianças que não se comportavam direito. O senhor barrigudo poderia muito bem
estar carregando uma criança, pensou, mas o saco estava imóvel. E nunca fez
muito sentido para ela alguém que raptava crianças mal comportadas. Amara sempre
foi bagunceira, mas o tal homem nunca apareceu.
Ela ficava olhando na janela de sua casa para ver se ele
iria aparecer depois de alguma traquinagem. Via alguns homens maltrapilhos
passando, mas eles nunca entraram. Então estavam quites por ora.
Enquanto ordenava os itens no armário, já a noite, percebeu
que tinha esquecido de comprar sabão. Ela pensou em voltar ao mercado, mas como
já havia escurecido, não seria uma boa opção. Ela resolveu então simplesmente
colocar sua camisola e deitar. Ao pressionar o interruptor, a lâmpada deu um
estalo e se apagou. Amara ficou tateando no escuro até pegar o celular e
iluminar as gavetas atrás de uma lâmpada. Obviamente, sem sucesso, uma vez que
não estava na lista. Resolveu simplesmente deitar e ficar encarando o escuro.
Ela lembrou das várias histórias que lhe contavam antes de dormir, por causa do
medo do escuro. Algumas tinham uma menina perdida num país maluco, outras um
rapaz que podia voar, nunca envelhecia e tinha sua própria turma.
Ela sentia um medo abismal do escuro e seus monstros. Mas
imaginando todas as histórias, ela adormecia rápido e não tinha de lidar com
ele por muito tempo. Então estavam quites por ora.
Mas bem.
Os monstros de Amara nunca foram embora. O monstro
continuava no armário. O Homem do Saco permanecia vagando. Os monstros do
escuro continuavam a fazer barulho quando a luz apagava. Mas todos eles
perceberam que Amara tinha tanto medo deles quanto da realidade. E que, quanto
mais ela cresceu, maiores ficaram os monstros dela. Todos eles se apiedaram e
resolveram deixar Amara em paz.
Então estavam quites. Por ora. E Amara continua assustada.
Apenas com monstros maiores.
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